terça-feira, 1 de junho de 2010

Texto discutido no Grupo.

170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53
Democracia por entre
classes e raças
Antonio Sérgio Alfredo GUIMARÃES. Classes, raças
e democracia. São Paulo, Editora 34, 2002.
231 páginas.
Omar Ribeiro Thomaz
Respeite meus cabelos, brancos
Chico César
O Brasil mudou. E mudou ali onde, ao longo
de décadas, suspeitou-se que estaríamos diante
do irredutível: aquelas representações que afirmavam
traduzir o que seria a nossa identidade
nacional. Como numa espécie de suspensão do
tempo, imaginou-se, durante décadas, um Brasil
que se realizaria no espaço, e que não seria outro
se não o país que resultasse do encontro das três
raças constitutivas de nossa nacionalidade. Podemos
afirmar, sem medo, a existência de uma longa
tradição discursiva (e política) que predestinava
o Brasil à superação de sua marca de origem, a
violência inerente ao sistema escravista, estando
assim a construção da nação condenada a superar
a distância inicial imposta aos grupos formadores.
É Gilberto Freyre quem cria um verdadeiro esquema
espacial e funcional numa forma mais acabada,
o qual representaria a superação da distância
existente entre a casa-grande e a senzala, entre o
sobrado e o mocambo, num processo social específico,
a mestiçagem. Ao mulato caberia a redenção
de nossa história que, diga-se de passagem,
foi descrita por Freyre em sua obra magistral nos
anos de 1930 como violenta e prenhe de conflitos.
De teoria do Brasil à ideologia, de interpretação
do país à cultura nacional, a democracia social
de Freyre, transformada em democracia racial, parecia
ter vindo para ficar. Em todo caso, como
tudo aquilo que chega em sua casa e parece se
eternizar, tal interpretação não deixou de provocar
incômodos desde o princípio. Já nos anos de 1930
e 1940, várias vozes levantaram-se no sentido de
criticar essa visão autocomplacente que passara a
predominar entre nós, e que teve conseqüências
em projetos políticos e nas instituições. A percepção
de que estaríamos diante de um mito não esfriou
as críticas advindas dos movimentos negros
que se espalharam pelo país, nem as da academia,
e as representações paradoxais que surgiam nos
tratados sobre identidade nacional, nas artes, na literatura
ou nas manifestações da cultura popular
acabaram por constituir uma arena de debate. Eis
o Brasil repetidamente confirmado como nação
naquilo que caracteriza essas entidades políticas
modernas: antes de serem um produto material
acabado, ou uma realidade social transparente,
parece que temos diante de nós um debate sem
fim, um foco virtual a orientar projetos e ansiedades,
instituições e expectativas, interpretações do
passado e projeções de futuro.
Antônio Sérgio Guimarães não se furta em
nenhum momento à complexidade que se desenha
diante de seus olhos. Num conjunto de ensaios
que supera as fronteiras existentes entre as ciências
sociais, o autor digladia-se igualmente com a literatura
propriamente sociológica e a que viria de
uma tradição antropológica, com as vozes que vêm
da arte e da literatura e aquela que se apresenta
como proveniente de movimentos sociais. Afinal
de contas, de identidade nacional se trata, e sobre
ela, incluídos e excluídos, ricos e pobres, “brancos”
e “negros”, todos temos algo a dizer.
Os principais interlocutores de Antônio Sérgio
são, com toda a certeza, de duas ordens distintas.
De um lado, seus pares: sociólogos e antropólogos;
de outro, e em pé de igualdade, a
inteligentsia vinculada aos movimentos sociais no
Brasil, particularmente os movimentos negros.
Para estes, o mito de democracia racial tornar-seia
seu principal alvo, assim como para a literatura
especializada, de forma evidente a partir da década
de 1970 e do acirramento das lutas pela
democratização do país. Contra a ordem harmoniosa
e não-conflitiva pintada pelo enredo mítico,
ergue-se a fala desmistificadora que revela a sociedade
brasileira tal como ela é: racista e discriminadora.
A democracia racial teria se tornado
uma espécie de instrumento ideológico que legitima
as desigualdades e impede a transformação.1
Numa leitura certamente interessada, já comum
em nossa tradição intelectual, dois momentos
se destacam: a década de 1930 e Gilberto
Freyre, momento em que o mito é construído, e
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os anos de 1950, quando, sob a batuta de Florestan
Fernandes e Roger Bastide, de um lado, e
Guerreiro Ramos e Costa Pinto, de outro, denuncia-
se o preconceito e a discriminação, ainda que
sob pena de a questão racial ter-se reduzido à
problemática de classes.
E é justamente tendo como ponto de partida
o conceito de classe social – e seus desdobramentos
na sociologia no Brasil – que Antônio Sérgio
Guimarães inicia esta coletânea de ensaios que,
arrisco, veio para ficar. Para além do rigor conceitual
anunciado logo no primeiro momento – o
que em seus próprios termos garante a perenidade
de um trabalho sociológico – o conjunto dos
ensaios é o que melhor representa o terremoto
que, há pelo menos uma década, tem contemplado
o panorama das ciências sociais no Brasil, prenunciado
na necessidade de revisitar a nossa tradição
intelectual, rever os clássicos, renovar sua
leitura e, de quebra, chacoalhar os lugares comuns
que dominam qualquer universo social –
como lembra Bourdieu, o mundo intelectual é um
mundo social como qualquer outro. E mais: se
desejamos uma sociedade mais justa, devemos
(nós, da universidade) repensar a nossa já histórica
relação com outros grupos sociais – nomeadamente
movimentos sociais, sindicatos e organizações
políticas – e com o Estado.
O problema é ainda mais intrincado, pois os
dois conceitos iniciais que orientam a análise de
Antônio Sérgio, “classe social” e “raça”, são, como
de praxe, importados. Importados de tradições
sociológicas hegemônicas que pautaram a consolidação
da moderna sociologia entre nós (poderia
ser de outra forma?) e de tradições culturais e políticas
estrangeiras não menos hegemônicas. À crítica
de que o conceito de classe social não dá
conta da particularidade da reprodução da desigualdade
social e da pobreza entre nós – o que
exige sua revisão, tema do primeiro capítulo – sobrepõe-
se o desconforto suposto numa idéia de
“raça” (sempre entre “aspas”) que parece distante
do universo social brasileiro – tema do livro como
um todo, mas particularmente do capítulo 2.
Ciente desse desconforto, sobre o qual muito tem
sido escrito nos últimos anos, Antônio Sérgio enfrenta
o problema da seguinte forma: a percepção
sociológica do caráter questionável do conceito
de “raça” não implica seu abandono como categoria
social que opera nas relações sociais.
O dilema não é menos aflitivo do que aquele
enfrentado por Vicent Capranzano no início da
década de 1980, quando procurava, a partir de
um procedimento etnográfico, compreender a
instituição do poder do ponto de vista dos poderosos
na África do Sul então dominada pelo apartheid.
2 A proposta implicava uma aproximação ao
mundo dos “brancos”, divididos entre anglófonos
e boers. A crítica ao apartheid, por parte do antropólogo,
começava numa tentativa de se afastar
de categorias como “negros”, “brancos”, “indianos”
ou “coloured” – tratava-se afinal de classificações
criadas pelo apartheid para garantir sua
perpetuação. No momento de construir o texto,
Capranzano não conseguiu escapar dos termos
por ele criticados, pois se encontrara com um
mundo social efetivamente dividido entre “brancos”,
“negros”, “indianos” e “coloureds”.
Lidamos com um dilema pelo menos análogo
no Brasil? Um conceito como o de “raça”, criticado
há pelo menos um século por uma vigorosa tradição
antropológica, poderia ser incorporado como
uma categoria social? Antônio Sérgio encontra-se
em meio a um debate, que é recuperado ao longo
dos seus ensaios, em especial no capítulo 2, quando
o autor dá voz aos seus críticos. A idéia de
“raça” como um conceito nativo que não poderia
ser assim incorporado como categoria sociológica,
ou a noção (esta sim muito presente na academia
brasileira) de que se trataria da manipulação de um
jogo dual de classificações devedor de uma realidade
estrangeira, particularmente dos Estados Unidos,
constituem argumentos respondidos pelo autor
quando procura apresentar as linhas que
conduzem a discussão em torno do racialismo.
Antônio Sérgio incorpora ainda as críticas daqueles
que vêm na noção de “raça” algo carregado de um
sentido histórico preciso, claramente devedor da
biologia ou da genética.
O que parece que deveria constituir um objeto
mais sistemático de análise, ou dúvida, diz
respeito à afirmação de que a noção de “raça”,
como conceito nativo, é realmente operativa para
compreender a realidade brasileira. Se é evidente
que estamos num país numericamente dividido
pelo censo como sendo formado por “brancos”,
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“pretos”, “pardos”, “amarelos” e “índios”, e que é
percebido por setores dos movimentos negros e
por alguns intelectuais como pautado pela existência
de “negros” e “brancos”, valeria a pena
lembrar aqueles que insistem na evidência de
uma dinâmica social pautada pela ambigüidade
quanto às classificações baseadas em fenótipo ou
origem. Injusto seria dizer que Antônio Sérgio não
tem em conta autores como Peter Fry, Yvonne
Maggie ou Mônica Grin. Parece no entanto que
deveríamos levar adiante esta reflexão, que, por
outro lado, não coloca em xeque a proposta do
autor, particularmente no que diz respeito às análises
que têm a pobreza como questão.
De certa forma, essa ambigüidade está presente
quando Antônio Sérgio incorpora em sua
análise uma reflexão sobre os “baianos” da cidade
de São Paulo. Se é evidente que a clara percepção
de que estamos diante de uma violenta
discriminação de um grupo balança os alicerces
de uma nação que se queria étnica e regionalmente
harmônica, não é menos claro que um grupo
como o dos “baianos” nos obriga a rever rígidas
categorias pautadas pela idéia de “raça”. Aqui,
ao fenótipo se somam outras características cruciais
para definir a experiência da discriminação,
como gestos, sotaques etc.
Por fim, ao enfrentar o mito por sua negação
cotidiana, o insulto racial, Antônio Sérgio apresenta
um dos ensaios mais luminosos desta coletânea,
o qual deve (eu espero) render múltiplas etnografias
e estudos de caso, pelas questões que
levanta. O insulto racial constitui um dos rituais
mais perversos do nosso cotidiano, representando
uma dimensão essencial das relações entre os
grupos sociais no Brasil, e revela uma dimensão
privada nem sempre bem trabalhada pelas ciências
sociais: o sofrimento individual como esfera
decisiva na criação de subjetividades e na reprodução
de jogos sociais. Sua porta de entrada são
as demandas apresentadas na Delegacia de Crimes
Raciais da cidade de São Paulo, o que, em
princípio, oferece certas limitações, para as quais
o autor está absolutamente atento. A primeira diz
respeito à premissa de que o insulto racial, que
nos envolve a todos, possíveis insultantes e possíveis
insultados, desde a mais tenra idade, pode se
traduzir numa demanda judicial. A tentativa de
iluminar o processo de insulto por meio do expediente
judicial, o qual, por definição, recorta o
conflito a partir do uso explícito de termos racializantes,
não permite que cheguemos à conclusão
de que o insulto institucionalize a possibilidade
de “fazer o insultado retornar a um lugar inferior
já historicamente constituído” (p. 194). No limite,
parece que o autor se apropria da forma de um
discurso social extra-legal, “o insulto racial”, para
descrever e informar um processo de institucionalização
de pretensões de inferiorização. A circularidade
do raciocínio, contudo, não compromete a
importância de cada um dos pólos desse processo,
apenas chama a atenção sobre as inúmeras
possibilidades abertas pela riqueza do material levantado
e para a complexidade social interna às
relações pautadas pelo insulto. Suspendendo, ainda
que momentaneamente, suas conclusões, aceita-
se o convite proposto pelo próprio autor para
participar ativamente no debate vivo plasmado
neste e em outros volumes escritos por Antônio
Sérgio Guimarães.
De alguma forma, seu trabalho indica uma
forte tendência a um reencontro das ciências sociais
com momentos decisivos de sua história,
agora em outros termos, pois deparamo-nos com
uma sociedade que passou por um recente processo
de democratização e que agora, mais do
que nunca, olha para a academia não apenas à
espera de soluções, mas com a expectativa daqueles
que exigem um tratamento pautado por
noções de igualdade – isto sim, algo, até agora,
alheio à nossa tradição histórica.
NOTAS
1 Cf. “Democracia racial: o mito e o desejo”,
mesa-redonda, Folhetim, Folha de S. Paulo,
8/6/1980.
2 Vicent Capranzano, Wainting: the whites of
South Africa, Londres, Granada, 1985.
OMAR RIBEIRO THOMAZ é professor do Departamento
de Antropologia da Unicamp e
pesquisador do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento e do Núcleo de Pesquisa sobre
o Ensino Superior.

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